Fantasias paranóicas – a crise do pensamento simbólico e a cultura hater 

(Cena do filme Inimigo Meu)

Desde o início das primeiras proposições acerca da existência do inconsciente, na passagem do século XIX para o XX, surgiu um fantasma que a todos nos assombra: o de sabermos que não sabemos exatamente quem de fato somos. Ou melhor, o de termos de lidar constantemente com a complexidade psíquica que nos ensina que tudo o que sabemos sobre nós mesmos nunca é tudo. O homem não é senhor de sua própria casa. 

Tenho tido cada vez mais a impressão de que a radicalidade dessa experiência ainda não foi de fato assimilada pela maioria de nós, e isso está na base dos conflitos atuais mais graves, que vão dos contextos familiares aos cenários geopolíticos. 

Carl Gustav Jung enfrentou essa questão de forma muito corajosa quando tratou da sombra, afirmando que não apenas os conteúdos reprimidos e indesejáveis ali se situam, como também as potências desconhecidas e todos os conteúdos que não obtiveram ainda energia para irromper à consciência. Enfim, o outro que nos atormenta sempre somos nós mesmos, de alguma forma.

Isso nos abre um leque de possibilidades praticamente infinito, matéria-prima para compreendermos não apenas processos individuais como também sociais. Esse é aqui meu ponto: como as fantasias associadas a Ets na sociedade brasileira (e veiculadas em sites que se dizem esotéricos e nas redes sociais) manifestam aspectos do inconsciente social do brasileiro? O que essas fantasias revelam sobre nossa psique social?

O primeiro ponto que tem me chamado a atenção foi como nos últimos anos nossa sociedade intensificou a produção de fantasias paranoicas, o que se evidenciou em episódios como os da URSAL, a cartilha gay, as orgias nas universidades (confesso que essa é a minha predileta, considerando o longo período que tenho vivido nos ambientes universitários onde não tenho visto nem sombra de Eros ou Dionísio…). Mas uma em especial me chamou a atenção: a fantasia de que a esquerda no Brasil está sendo controlada por Ets, chamados de Reptilianos, numa conspiração extraterrestre para dominar a raça humana e implantar o império das sombras definitivamente.

Dois aspectos aqui merecem uma reflexão, o primeiro acerca da crescente tendência à criação de fantasias paranoicas sociais, e a segunda sobre qual o aspecto sombrio que vemos projetado nesses Ets do mal.

Sobre paranoia, foi James Hillman que trouxe uma chave compreensiva de extrema relevância ao afirmar que, quase sempre delirante (sobretudo em sua pretensão de coerência absoluta), “a paranoia seria definida como a demonstração de uma revelação noética, vivida literalmente” (HILLMAN, 1993, pg. 42). Não apenas o  elemento projetivo está posto aí claramente, como também o desejo de oferecer uma explicação ou proposição totalizante, fruto de um pensamento claramente incapaz de adentrar o território do simbólico. Incompetência simbólica, projeção, literalidade e desejo de explicações totalizantes, eis aí o âmago da paranoia. 

Impossível, neste ponto da reflexão, não trazermos alguns dados levantados por pesquisadores brasileiros sobre o avanço do neopentecostalismo no Brasil (e a penetração e o crescimento desse grupo só avança), vertente religiosa que justamente “educou” nos últimos 20 anos a população brasileira, apresentando uma visão de mundo totalizante e binária, com discursos repletos de “todos aqueles”, “sempre”, “nós e os outros”, “nós, os cristãos de verdade”, “o lugar das mulheres”, “o lugar dos homens”, etc. 

Esse processo que tem claramente as marcas de um projeto de poder, iniciou bem antes da eclosão da onda paranoica de direita que vimos de 2018 em diante, com a obtenção de diversas concessões de canais de tv e de rádio1. Temos nesse cenário o que podemos considerar como um clássico projeto de poder por meio da utilização de recursos midiáticos da cultura de massas (MORIN, 1994). 

Outra marca central do pensamento neopentecostal brasileiro é a aplicação de uma interpretação literalizante dos textos sagrados, ignorando o caráter metafórico dos textos míticos, seja de que religião for. Lembremos aqui que J. Campbell2 afirma que “mito é a religião dos outros”, ou seja, para as culturas originais, as narrativas míticas eram narrativas religiosas, não há diferença. 

E por fim parece até mesmo desnecessário apontar para o caráter projetivo que o discurso neopentecostal apresenta nas eternas cenas de cultos nas quais o mal é sempre o demônio (que normalmente é fruto de uma macumba ou algo assim), os não-cristãos são portadores da perdição, e as mulheres, como sempre, carregam o julgamento eterno de serem a porta por onde penetra o demônio (basta assistir ao programa “O casamento blindado”, da Record, para entender como os casamentos disfuncionais são sempre culpa da mulher não suficientemente submissa)3.

Indo agora ao segundo ponto, o que revela a projeção de sombra que vê uma conspiração extraterrestre de reptilianos? A própria escolha dos extraterrestres já evidencia a que ponto chegamos na crença de sermos sobre/naturais, ou seja, de estarmos acima de toda a natureza. O brasileiro é um exímio destruidor do meio ambiente, um analfabeto ecológico pleno, com sua preferência pelo urbanismo predatório e pelo envenenamento da terra e dos recursos naturais, o que está em nosso DNA desde o tratamento recebido pelos povos indígenas quando do começo de nossa história oficial (ou oficiosa). Nossa sombra é extraterrestre, expulsamos a Terra do mundo, quando falamos em mundo ignoramos o ecossistema. Nosso mundo é só de eus (infantilizados, quase sempre), e não entendemos o porquê do sofrimento psíquico só aumentar. 

Olhemos agora para os reptilianos. Algumas fantasias não são apenas explicativas, são autoexplicativas. Que aspectos da sombra do fundamentalismo político-religioso brasileiro estão representados pelos reptilianos? Em um muito breve entendimento do que é o cérebro reptiliano em nossa espécie, temos que: 

“Já, nosso cérebro reptiliano, nascemos com este pronto. É o primeiro, em nossa escala neuroanatômica, localizado acima de nossa medula espinhal. É o primeiro a se desenvolver na gestação, e é o mais antigo, em nossa evolução. Nele, emerge nossos instintos, e nossas percepções mais primitivas, tais como, medo, sono, fome, proteção, humanidade, sobrevivência, defesa e ataque, ação e reação. dentre outras” (Daniel Lascani: in https://www.psicologia.pt/artigos/ver_opiniao.php?3-cerebros&codigo=AOP0496).

Também encontramos sobre ele, numa rápida pesquisa, que: 

“Esse tipo de cérebro não é reflexivo e, contrariamente, age de forma inconsciente e por instinto. Ao ter como função principal encargar-se da nossa própria sobrevivência, se considera também que também acaba dificultando os nossos objetivos pessoais, uma vez que apenas se sente seguro unicamente estando em território familiar e, quando entra em território desconhecido, se sente sumamente ameaçado e prefere fugir e escapar antes de encarar algo novo” (Marissa Glover: in https://br.psicologia-online.com/cerebro-reptiliano-o-que-e-caracteristicas-e-funcoes-151.html).

É então que se revelam alguns aspectos interessantes: territorialismo, desconforto com o novo ou o diferente, propensão ao sistema ataque-defesa, medo, fome, instintos mais primitivos, o que inclui obviamente os sexuais (e as orgias universitárias e as mamadeiras em formato de pênis revelam seu sentido). 

As fantasias paranoicas que têm comparecido nos grupos de watsap e nas bolhas das redes sociais, se forem devidamente escutadas pelos sentidos da imaginação, dão voz a tudo que foi excluído em nossa sociedade contemporânea. E entre esses emudecidos, duas vozes despontam em nosso caso: o ecossistema (o terrestre) e o corpo, esses lugares que desabitamos. 

  Os delírios das massas sempre nos ensinam coisas muito interessantes.

Referências

FONTELES, H. Fé na mídia (Tese defendida). PUC/SP, 2012. Tese Fé Na Mídia PUC 2012 | PDF | Sociologia | Comunicação (scribd.com)

GLOVER, M. https://br.psicologia-online.com/cerebro-reptiliano-o-que-e-caracteristicas-e-funcoes-151.html). 

HILLMAN, J. Paranoia. Petrópolis: Vozes, 1993.

JUNG, C. G. Obras completas 10.1 e 10.3. Petrópolis, Vozes, 2011.

LASCANI, D. https://www.psicologia.pt/artigos/ver_opiniao.php?3-cerebros&codigo=AOP0496.

MORIN, E. Cultura de Massas no Século XX, vol. 1.  São Paulo: Forense-Universitária, 1994. 

OLIVEIRA, F. R. C. e MARTINS, C. C. N. O discurso eleitoral da Igreja Universal do Reino de Deus e a ascensão de Bolsonaro. PLURAL, Revista do Programa de Pós -Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.28.1, jan./jun., 2021, p.237-258.(www.doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2021.176735)

  1. Três autores que estudaram esse processo de penetração social das igrejas neopentecostais por meio da ocupação das concessões de canais de tv e de rádio foram Heinrich Fonteles e Oliveria e Martins, constantes nas referências. Também Jorge Miklos trata desse tema em diversos artigos científicos disponíveis no Google Acadêmico. ↩︎
  2. Essa fala está presente no vídeo A saga do herói, disponível no Youtube ↩︎
  3. Uma boa análise desse programa pode ser encontrada na dissertação de mestrado ↩︎
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Conheça:
Diretora de cursos e atividades científicas do Instituto do ImaginárioDoutora em Comunicação e Semiótica, pós-doutora em Comunicação e Cultura e Analista Junguiana, pesquisadora e professora de Psicologia Analítica, Comunicação e Teoria Crítica da Mídia. Astróloga na linha transpessoal. Dedicou-se nas últimas décadas aos estudos sobre teoria do imaginário e da imagem, empatia, mimese, teoria do mito, estudos do feminino, teoria dos vínculos e resiliência. Possui uma série de publicações que podem ser acessadas nos links indicados na página inicial.

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