Heróis românticos coreanos – algo a dizer sobre o animus?

Pra começo de conversa…

As discussões acerca da masculinidade tóxica têm ocupado os espaços dos consultórios, dos fóruns de cultura, as salas das universidades, as páginas dos veículos midiáticos. As novas gerações de mulheres têm dado sinais de que não estão mais dispostas a conviver com padrões machistas de conduta, com comportamentos masculinos estereotipados e truculentos até há algumas décadas considerados aceitáveis, senão mesmo desejáveis. 

Essa “revolução das garotas” tem sido compreendida a partir de muitos fatores psicossociais, mas todos partem de um ponto comum: a situação econômica da mulher mudou nas últimas décadas, poucas são as famílias cuja renda provém exclusivamente dos homens. Na realidade, as estatísticas apontam para a enorme quantidade de famílias brasileiras monoparentais e predominantemente femininas, e o abandono paterno é um quadro social inegável no Brasil, o que faz com que as mães figurem como as principais mantenedoras, ainda que as mulheres continuem enfrentando desigualdades salariais em grandes empresas e ambientes corporativos. Tudo isso sabemos bem, está nas estatísticas oficiais e nas pesquisas de máxima credibilidade, não digo nada de novo. Com autonomia econômica, ainda que na penúria, o fato é que a mulher não depende mais do dinheiro de um homem para sobreviver. Mudando o perfil dessa mulher, mudaria também o perfil dos homens que elas desejam?

Quando nos referimos ao tema da masculinidade tóxica, devemos considerar que há várias exceções, resistências masculinas maravilhosas, e grupos de homens que lutam por mudanças na mentalidade predominante do brasileiro quanto ao que é desejável, a partir de critérios éticos, em busca de entendimentos mútuos entre homens e mulheres. 

Outro ponto importante é esclarecer que trato aqui do que poderíamos chamar de arquétipo do masculino e arquétipo do feminino, longe das subjetividades e das vivências pessoais. Muitos têm negado a existência desses arquétipos, mas quem trabalha com as narrativas míticas e com as produções simbólicas das culturas arcaicas sabe que sua existência é inegável, tanto quanto a existência do arquétipo do hermafrodita. Daí a reduzir as questões de gênero a essas duas matrizes há uma grande diferença. São arquétipos, e como tais são vividos na esfera pessoal por meio dos complexos do ego, da anima e do animus, como postula Jung, com toda a diversidade de cada psique individual. Mais não aprofundaremos aqui porque a discussão é ampla e nosso objetivo não é nos atermos a esse ponto, mas sim falarmos do animus e das representações do animus nos seriados coreanos. 

Por conta também do nosso objeto, trataremos exclusivamente das relações heterossexuais nesta breve reflexão, não por considerá-las mais importantes do que todas as outras possíveis, mas porque são delas que tratam a grande maioria desses seriados românticos coreanos, os doramas. Claro que essa heteronormatividade já nos dá boas dicas de que teríamos muito o que discutir se fôssemos por esse caminho. Posto esse contexto, e já de início reconhecendo a enorme emboscada que significa atualmente falar de masculino e feminino, chama a atenção o estrondoso sucesso de público que os doramas asiáticos, especialmente os coreanos, têm obtido a partir da última década. 

Também não trataremos aqui dos seriados históricos, de época, que possuem particularidades próprias, apesar de em grande parte   se igualarem aos outros no que diz respeito às tramas românticas, mas apenas daqueles que se desenrolam no contexto da contemporaneidade. 

Os heróis românticos dos doramas

Tratando dos seriados produzidos na Coréia do Sul, nosso corpus de análise (em torno de 40 seriados analisados) restringiu-se aos seriados cujo contexto é a sociedade coreana contemporânea. Neles, vemos que as tramas possuem em geral um fio narrativo bem padronizado: as histórias tratam da quase-impossibilidade do amor romântico, das jornadas extenuantes de trabalho e da subserviência muda e massacrante ao sistema capitalista de “triunfar ou morrer”. Pais que abandonam os filhos em condições extremas, mães terríveis e pais tiranos, famílias que insistem em casamentos arranjados contrariando o desejo dos filhos, chefes que são autorizados a agredir fisicamente seus funcionários. Mulheres totalmente servis e resignadas, lutando desesperadamente para demonstrar seu valor, ou, tendo desistido de tudo, garotas rebeldes que lutam sozinhas contra um mundo para o qual parecem não ter nenhum valor, a não ser que demonstrem uma resistência e uma força implacáveis frente a todas as mais radicais intempéries e sejam produtivas no trabalho, cobrindo quase sempre a incompetência de um chefe homem ou de uma chefe tirana. 

As heroínas românticas são quase sempre jovens em situação de fragilidade social, massacradas por condições de vida terríveis, abandonadas pelos pais (ou tendo de sustentá-los desde muito cedo) ou pequenas tiranas mimadas, filhas de famílias ricas ou celebridades da mídia, que vão aos poucos se humanizando por conta de alguma grande reviravolta da vida. A temática da repressão sexual que os seriados trazem por si só daria pano para um tratado, mas não é no momento nosso foco, podemos falar sobre as representações da mulher, do feminino e da sexualidade em outro momento. 

Neste texto, vamos olhar para os heróis românticos, os personagens principais que, mesmo quando fazem pares românticos que dividem a centralidade do protagonismo, sempre se destacam, até mesmo pelo tratamento estético que recebem da câmera. O foco das câmeras está nos seus microgestos; os melhores closes, as frases mais interessantes, os enquadramentos em câmera lenta, etc. são prioritariamente deles, deixando evidente que o público-alvo responsável por movimentar um mercado que, estima-se, seja de milhões ao ano1, são as mulheres. E, espantosamente, mulheres de várias idades e países. 

O olhar do analista junguiano, atento aos movimentos da psique, perceberá então que não é exatamente da representação de homens que tratam as personagens dos doramas, mas sim de personagens que comportam a projeção do animus. Há tantas vivências subjetivas do animus quanto grãos de areia no mar, sabemos, mas também sabemos que todo complexo se constitui a partir de temas arquetípicos, e estamos aqui frente a um deles: um padrão ideal possível de masculino (e certamente não o único, claro) gerado pela psique feminina (e pela psique social).

Antes de entrarmos na consideração de como esse padrão ideal se apresenta nos doramas, salta aos olhos a diferença geracional nos modelos de masculinidade. Os homens mais velhos, pais, sogros, chefes, políticos, líderes que povoam os seriados são em sua grande maioria machistas, agressivos, autoritários, muitos deles cruéis, e quase todos têm amantes e tratam suas submissas esposas com desprezo e muitas vezes práticas extremas de humilhação. São eles os portadores da sombra do masculino nos doramas. Ou então morreram jovens e deles as filhas protagonistas só têm boas e doces lembranças. Pais amorosos e gentis existem, mas são evidente minoria nos seriados. 

As filhas jovens desses casais fazem de tudo para não seguirem o destino servil das mães, e, via de regra, declaram que os relacionamentos amorosos não estão nos seus planos, demonstrando em muitos diálogos a clara equivalência que fazem entre relacionamentos e tragédia pessoal. Não querem sofrer, e armam-se com personas de ferro, fazendo de tudo para fugirem do azar de terem o destino indesejável de se apaixonarem. 

Os jovens homens que lutem por seus corações. E eles lutam. É aqui, então, que começa a ficar surpreendente para nós, brasileiros ensinados pelos estereótipos latinos de masculinidade a pensar que um homem sedutor e viril se aproximaria mais de músculos e barbas do que da sutileza poética. Acontece que, pelos índices de audiência que não deixam dúvidas, os atores e modelos asiáticos (portadores desse padrão) despontam como a tendência em ascensão, inclusive nos cenários fashionistas.

Os personagens masculinos são praticamente andróginos na aparência e surpreendentemente viris nos comportamentos e na capacidade de tomarem decisões e serem assertivos nas suas posições. A força que não aparece no corpo ou nos gestos – delicados e gentis – aparece no desejo, na capacidade de manterem-se fiéis aos próprios valores, de superarem todos os obstáculos concretos, e na disposição de dizerem sim aos sentimentos amorosos, esforçando-se para que suas ações estejam à altura dos sentimentos que têm. 

Atentos aos sinais, às sincronicidades, percebem as marcas da trajetória das setas de Eros sempre antes de suas parceiras, e dedicam enorme energia e atenção ao planejamento dos passos que os levem para mais perto das garotas de ferro que, fatalmente, acabam por ceder, ainda que no final da trama.

Ao ver esses seriados ficamos todo o tempo presos numa incrível ambivalência, já que os homens são todos extremamente protetores e cuidadores, como se suas amadas fossem seu bem maior, mas em nenhum momento usam essa proteção para fragilizarem as mulheres ou para exercerem poder sobre elas, o que bem conhecemos como o velho truque da “gaiola de ouro e almofada de veludo” no qual muitos pretendem deixar a princesa presa, dormindo em sono eterno. Pelo contrário, estimulam e apoiam suas conquistas profissionais e pessoais, colocando verdadeiramente sua masculinidade (e aí a virilidade aparece) a favor de sua amada. E invariavelmente cozinham melhor do que elas. 

Em alguns seriados há uma clara infantilização das personagens, sobretudo as femininas, mas essas garotinhas lutam como um dragão se algo se interpõem em seus caminhos, deixando evidente que se trata mais de um comportamento lúdico do que falta de prontidão para os desafios da vida que as tramas apresentam. 

Outra peculiaridade é a de que os heróis românticos não flertam despreocupadamente; ou se apaixonam ou são absolutamente defensivos. Para a mulher que eu amo, tudo, para as outras… que outras? Gentis, mas sóbrios e introvertidos. Os personagens mais voltados para o humor raramente são protagonistas românticos. 

“Um homem que caminha com uma dor é mais elegante”, já dizia Fernando Pessoa, e elegância é o que mais se poderia dizer desse modelo de homem que o dorama apresenta. Vestem-se, penteiam-se, caminham, sentam-se, levantam-se e interagem com suas mulheres com uma elegância impecável2, natural, e bastante incomum em outras culturas. A elegância se alia então a um profundo espírito poético para compor uma combinação explosiva. Os diálogos internos são arrebatadores e de uma poesia ímpar, muitos deles embasados na literatura e na poesia coreana e mundial. Não são raras citações diretas aos grandes clássicos da literatura mundial. Atém-se a questões simples, mas lançam uma perspectiva abismal e bela a uma simples xícara de café. Não há verborragia, não há palavras inúteis e tagarelice em nenhum momento, contar vantagem só é visto nos personagens cômicos. O herói romântico dos doramas coreanos é elegante também nas palavras, que ele diz com toda a força do seu caráter, como se elas saíssem diretamente da alma.

Nem os trovadores ou os românticos levaram tão longe a delicadeza aliada à virilidade como o fazem esses personagens. Os mais jovens juntam a essa combinação às vezes uma pitada de humor. E ainda que derrotados pelo trabalho ou pela família, erguem-se e lutam para estarem de pé e ao lado de suas heroínas, com grande demonstração de fidelidade (e aqui não estamos tratando de fidelidade sexual, mas de senso de parceria).

Enfim, é uma incrível radiografia do que anda acontecendo com o desejo das mulheres, sobretudo das novas gerações, e não só das asiáticas, considerando-se o fenômeno da audiência dos doramas no mundo e os muitos fãs clubes desses atores que dão rostos a esses personagens. 

Sobre o animus

“Antes que ela chamasse meu nome, não fiz um único movimento. Quando ela chamou meu nome, eu finalmente me tornei uma flor” 

(Diálogo interno do herói romântico de Revolutionary Love)

Podemos dizer que temos aqui algo que merece ser olhado com mais atenção por quem pesquisa os novos padrões de masculinidade. Afinal, se a velha pergunta de Freud sobre o que as mulheres querem, afinal, nunca poderá ter uma resposta padrão (já que cada mulher quer o que cada mulher quer, e nenhum de nós saberá nunca exatamente a forma e a dimensão do seu querer), podemos ao menos entender o que pode estar se formando no animus dessas milhões de mulheres que suspiram por Lee Min Ho, Cha Eun Woo, Kim Seon Ho, Song Kang, Lee Dong Wook, Kim Woo Bin, Sung Hoon, Kim Jae Wook, Hyun Bin,3 e por outros ventos que vêm do Oriente.

Frente às várias referências sobre a anima, na obra de Jung, percebemos como temos tão poucos escritos sobre o animus4. Não raro encontramos análises que focam apenas em seus aspectos sombrios, na possessão da mulher pelo complexo, em estereotipias que mal escondem o tom misógino e o sentimento de se estar ameaçado pela potência que as mulheres podem demonstrar. O clássico livro de E. Jung continua sendo uma das únicas fontes mais utilizadas, ainda que tenha começado a dar frutos o esforço de neojunguianas, tais como Susan Rowland, ou ainda demais vozes que começam a propor uma ampliação sobre o tema5

Comecei este artigo fazendo referências às discussões acerca da masculinidade tóxica, e encerro tratando de animus e do quanto esse tema ainda está por ser desdobrado. Homens não são o animus, claro está, mas em ambos está posta a questão da masculinidade. E é então que se descortina o abismo existente entre as fantasias femininas derivadas do animus nos doramas e as noções de masculinidade presentes nos homens brasileiros. 

Se olhamos para um e para o outro, nos espantamos por ainda conseguirmos nos entender minimamente. No entanto, esse entendimento tem sido cada vez mais difícil, conforme atesta a explosão de divórcios dos últimos 2 anos, quadro intensificado pela maior proximidade que a pandemia impôs entre os casais. E em 80% dos casos, aproximadamente, quem pede o divórcio é a mulher.

Continuamos sem saber o que queremos cada uma de nós. O querer não se revela tão facilmente assim, ele nos embosca nas esquinas dos afetos, e a complexidade humana não se deixa reduzir a fórmulas prontas. Mas é certo que temos nos heróis românticos dos doramas um perfil de masculinidade para o qual precisamos olhar mais atentamente. 

Nem todo masculino chega rasgando, alguns, florescem.  

Antes de eu chamar pelo seu nome,

Ela não era nada

Além de um gesto.
Quando eu chamei pelo seu nome,

Ela veio até mim,

E em uma flor se transformou
Da mesma forma que eu chamo pelo seu nome,

Alguém chamará pelo meu nome e

Haverá de convir com a minha luz e minha fragrância?
Eu também desejo chegar até ela,

E transformar-me em sua flor.

Todos nós ansiamos nos tornar em algo,
De ti para mim, e de mim para ti,
Nós desejamos nos transformar em um olhar,

Que não será esquecido.

(A Flor, poema de Kim Hye-Soon)

P.S. Sobre a poesia coreana: Poesia sul-coreana: o grito político de uma sociedade indignada | Revista KoreaIN

Referências: 

AMARAL, C. V. Psicologia Junguiana na Contemporaneidade: Uma Leitura feminista dos conceitos Animus e Anima no ensaio A Mulher na Europa. Biblioteca de monografia do IJEP, 2020. 

psicologia-junguiana-na-contemporaneidade-uma-leitura-feminista-dos-conceitos-animus-e-anima-no-ensaio-a-mulher-na-europa (ijep.com.br)

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo (vol. 9/1). Petrópolis: Vozes, 2012.

O eu e o inconsciente (vol. 7/2). 25ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

JUNG, E. Animus e anima – uma introdução à Psicologia Analítica sobre os Arquétipos do Masculino e Feminino Inconscientes. São Paulo, Cultrix, 2020.

MAZUR, D., MEIMARIDIS, M., RIOS, D.  O Mercado de Streaming na Coreia do Sul: Disputas Internas e a Invasão Estrangeira. Revista Novos Olhares, número 10, vol. 1., 2021. 

O_Mercado_de_Streaming_na_Coreia_do_Sul.pdf

ROWLAND, Susan. Jung. A Feminist Revision. Cambridge: Polity Press, 2002.

SOUZA, R. R. Anima e Animus: somente arquétipos ou também complexos? Artigo Site IJEP, 2021. IJEP | Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa

  1. Um artigo que traz dados concretos sobre o crescimento desse mercado de entretenimento é: O_Mercado_de_Streaming_na_Coreia_do_Sul.pdf ↩︎
  2. Certamente a indústria da moda se vende por meio dos doramas, mas é digno de nota o senso de moda dos garotos, uma certa atualização da estética dândi. ↩︎
  3. Para quem quer ter uma noção da aparência desses atores, o site a seguir traz uma matéria com uma amostra interessante: Os 47 atores coreanos mais bonitos do K-Dramas – Atualizado em 2021 (ivisitkorea.com) ↩︎
  4. O livro de Emma Jung, Animus e Anima, desponta como a grande referência, mas apenas abre as discussões sobre o assunto. ↩︎
  5.  Destaco aquí a bela monografia de conclusão de curso de Psicologia Analítica realizada por Cristiane V. Amaral, de 2020, presente na biblioteca digital de monografias do IJEP. ↩︎
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Diretora de cursos e atividades científicas do Instituto do ImaginárioDoutora em Comunicação e Semiótica, pós-doutora em Comunicação e Cultura e Analista Junguiana, pesquisadora e professora de Psicologia Analítica, Comunicação e Teoria Crítica da Mídia. Astróloga na linha transpessoal. Dedicou-se nas últimas décadas aos estudos sobre teoria do imaginário e da imagem, empatia, mimese, teoria do mito, estudos do feminino, teoria dos vínculos e resiliência. Possui uma série de publicações que podem ser acessadas nos links indicados na página inicial.

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