O que fazemos hoje, a maneira como lidamos com o amor e com as nossas relações amorosas, na maioria das vezes é exatamente o contrário do que nos levaria ao encontro do que queremos.
Primeiro porque, com raras exceções, perdemos a capacidade de enxergar que por detrás do ser amado, quem se apresenta é o deus do Amor, é Eros. Não sabemos mais reconhecer a presença de Eros. Presos às aparências, na era da visibilidade absoluta da sociedade midiática, não perguntamos pela alma, por aquilo que se quer revelar.
Segundo porque todo o ambiente contemporâneo das relações e das trocas afetivas se centra nas práticas do poder, e não no amor. E, como já disse Carl G. Jung, onde há poder, não há amor. Um exclui o outro, já que a última coisa que se pode pensar em fazer quando se joga o jogo do poder, é entregar-se. A entrega é a condição central de Eros (basta lembrar de Psiquê acorrentada ao penhasco, entregando-se à vontade dos deuses), mas se estamos no território do poder essa entrega sinaliza a rendição, a morte, e não o desejo da vida e a esperança contidos na entrega amorosa (mesmo que ela suponha a morte de algumas coisas). Por isso não pode haver entrega quando estamos em relações de poder.
Armas e brigas não fazem parte do universo próprio de Afrodite, e sim do de Ares, o deus da guerra, seu amante. É por isso que quando buscamos por Afrodite, esbarramos em seu amante, Ares. Alguns de nós conseguimos transitar entre os polos, hermeticamente, outros, porém, ficam eternamente presos no universo do poder e da guerra, sem conseguirem escapar de Ares e ir ao encontro de Afrodite.
Privilegiando o controle e o poder ao invés do amor, tornamo-nos personagens de histórias de horror, e, assim, aparentemente buscando pela deusa do amor, na realidade nos lançamos aos braços do deus da guerra.
Dentre essas histórias de horror, encontramos muitas vezes com a Medusa, com enredos que se desenrolam mais ou menos assim: tornamo-nos incapazes de ser o espelho no qual o outro se vê em toda a sua beleza; transformamo-nos no espelho cruel da madrasta da Branca de Neve. Sovinas e medrosos, não comunicamos ao outro a beleza que nele vemos, negando sua beleza ao buscarmos por padrões estereotipados de beleza e sucesso.
Quando reduzimos a beleza às imagens fabricadas pela indústria cultural e pela mídia, passamos a agir como a Medusa, devolvemos o olhar do outro com a maldição da feiura que o transforma em pedra, paralisando-o e o impedindo de viver. Teremos aprisionado o outro, porque transformado em estátua de pedra não há como partir, logo, não seremos abandonados jamais (estaremos maliciosamente seguros); mas não estaremos vivos.
Para entendermos melhor o papel do olhar do outro nas relações amorosas, a força e os sentidos contidos nesse olhar (essa metáfora de toda a alteridade, basta lembrarmo-nos das inúmeras vezes em que o espelho aparece nos contos de fadas) capazes de enfeitiçar docemente ou envenenar mortalmente, precisamos mesmo refletir sobre a Medusa1.
Junito Brandão afirma que “Medusa era uma jovem lindíssima e muito orgulhosa de sua cabeleira. Tendo, porém, ousado competir com a beleza de Atená, esta eriçou-lhe a cabeça de serpentes e transformou-a em Górgona. Há uma variante: a deusa da inteligência puniu a Medusa porque Posídon, tendo-a raptado, violou-a dentro de um templo da própria Atená.” (1986: 239).
Quando raptados pelas águas inconscientes de Poseidon, pela luxúria da paixão, arrastados e levados a profanar o templo sagrado da inteligência e da civilidade (e não é exatamente esse o comportamento dos que se apaixonam?), somos transformados pela vingança de Atenas, somos punidos. No mito, a punição da Medusa, mais vítima do que culpada, só pode ser compreendida se entendermos que todos os três personagens somos nós.
Incivilizados que se querem civilizados, Medusa é a sombra inevitável de nossa civilidade, é toda a dimensão sombria e incomunicável da alma que vivenciamos quando transitamos pelo outro lado dos bons sentimentos amorosos. É exatamente nesses momentos que descobrimos que não nos conhecemos o suficiente, que somos capazes de coisas terríveis quando traídos, abandonados, desprezados ou enfurecidos de ciúmes.
Mas é justamente nessas horas que nos falta a análise, o espelho usado por Perseu para vencer a Medusa, o espelho da capacidade simbólica requerido pelo processo de conscientização da sombra. Negamos veementemente a própria sombra, projetando-a no outro – transformamos o outro em estátua de pedra.
J. Brandão já dizia isso: “quem olha para a cabeça da Medusa se petrifica. Não seria por que ela reflete a imagem de uma culpabilidade pessoal?… Medusa simboliza a imagem deformada, que petrifica pelo horror, em lugar de esclarecer com equidade.” (Junito de S. Brandão: 1986: 240). O próprio Brandão nos sugere que a culpa que vemos no olhar da Medusa, petrificante e mortal, se origina do fato de desrespeitarmos a ensinamento do Oráculo de Apolo, em Delfos, que diz: “conhece-te a ti mesmo”.
Esse “conhecer a si mesmo” é pressuposto para a relação amorosa. Sem isso, sem a construção simbólica da alma (Psiquê) individual, Eros não encontra sua companheira. Sem alma não há amor e não há comunicação possível entre os amantes.
Quem busca por Eros, deveria buscar, antes de qualquer coisa, por si mesmo, pelo reconhecimento da própria sombra, reinventando um olhar que acolha a beleza do outro, suas particularidades, sua liberdade, sem transformá-lo em estátua de pedra para o aprisionar. E isso requer um longo, trabalhoso, mas significativo caminho.
Dedique tempo à sua alma e estará a cada dia um pouco mais próximo das portas dos templos de Afrodite e de Eros.
- Essa é uma leitura possível do mito da Medusa, que também pode ser lido em outro contexto de significado, a partir das transformações simbólicas ocorridas na passagem dos mitos da Grande Mãe para os mitos do patriarcado. Nesse caso, teremos uma interpretação bem distinta e igualmente interessante, que ficará para outro momento. ↩︎