Resumo: A obra “A Divina Comédia”, escrita por Dante Alighieri no século XIV, narra a jornada de um peregrino pelos três reinos da vida após a morte cristã: inferno, purgatório e paraíso. No inferno, acompanhado do poeta latino Virgílio, Dante passa por suas várias instâncias, ou círculos, que são em número de nove. O 7º Círculo, denominado o Vale do Flegetonte, é destinado às almas violentas, e é subdividido em três vales e uma cachoeira de sangue. Um destes vales é a Floresta dos Suicidas para onde vão os que cometem violência contra si ou contra os próprios bens, o que inclui suicidas e esbanjadores. Os suicidas se tornam sementes e crescem para virar árvores de folhas escuras, constantemente comidas pelas harpias, o que causa intensa e eterna dor.
O livro de Dante Alighieri, com ilustrações em preto e branco de Gustavo Doré, teve um papel marcante em minha infância. Tive acesso a um exemplar antigo, escrito em italiano, propriedade de um tio, que o mostrou a mim algumas vezes com um cuidado meticuloso, devido à raridade da obra. Como integrante de uma família católica, praticante, que tinha o inferno e o céu como verdades concretas, o acesso às ilustrações do livro povoou minha imaginação infantil e minhas crenças religiosas, produzindo em mim momentos do mais puro medo de sofrer eternamente por faltas cometidas contra as leis divinas, que a tradição oral e escrita nos apresentava como verdades absolutas. Passarem-se muitos anos até eu conseguir colocar essas crenças no seu devido lugar: o universo mitológico.
Em meio a possíveis faltas, ou pecados, o suicídio tem papel destacado, e tem sido condenado ao longo do tempo, por diferentes denominações religiosas Na visão cristã trata-se de uma grave violação à lei de Deus, o criador da vida e dos seres e único com direito a tirá-la. Desistir da própria vida é um ato contra ele, e não pode ser perdoado, pois o suicida estaria manipulando algo que não lhe pertence, mas que simplesmente lhe foi emprestado. No Espiritismo, ele vai para o Vale dos Suicidas, numa região das Trevas, onde há intenso sofrimento para a alma, sem um fim definido. Os judeus marginalizam os suicidas enterrando-os na lateral do cemitério, prática que decorre do conceito básico no pensamento judaico de que o corpo da pessoa não é de sua propriedade, mas um empréstimo de Deus. Desse modo, a pessoa não tem autonomia sobre o próprio corpo, pois assim como não se pode matar o próximo, a pessoa está proibida de “assassinar” a si mesma. Para os católicos, a pena é mais severa, o suicida permanecerá no inferno pela eternidade. Para a maioria dos evangélicos, o ato do suicídio faz com que o crente perca a salvação.
Passei a me incomodar com estas imagens de pecado e condenação, principalmente após o suicídio de uma tia muito próxima. Mais tarde, trabalhando com dependentes químicos, confesso que tive um grande aprendizado sobre o assunto, mas ainda era assombrado pelas visões religiosas, o que começou a mudar quando me aproximei da psicologia profunda, especificamente a de Carl Gustav Jung e de James Hilman, e também após um período como voluntário junto ao CVV (Centro de Valorização da Vida). Os ensinamentos de Jung me foram tão marcantes, que me tornei um terapeuta junguiano. Mas, o que realmente me provocou uma catarse, foi um depoimento de uma mãe, cujo filho tinha partido há pouco tempo. Seu relato comoveu os presentes, e deixou claro que, apesar de não ter mais seu filho de corpo presente, o tinha em alma, ao seu lado, em seu coração. Ela contou sobre a pressão que observa ser colocada pelo mundo sobre mães e pais que passaram por esta situação e rejeitou veementemente as condenações feitas por pessoas próximas, afirmando peremptoriamente que era impossível que o Criador condenasse alguém que decidiu não ficar mais aqui na Terra, ou que lhe infligisse ainda mais sofrimento após a morte, justamente por não suportar o sofrimento que tinha em vida.
As visões unilaterais e ainda predominantes sobre o suicídio em nossa sociedade não devem guiar o trabalho de apoio aos enlutados e essa é a bandeira que o grupo “De Portas Abertas”, formado por terapeutas junguianos, carrega. Sua missão é a de oferecer escuta ativa e amorosa a quem sofre pela ausência de um ser amado que morreu por suicídio. A complexidade e o caráter multifatorial desse fenômeno servem para impedir que seja tratado, assim como aos que por ele foram afetados, de uma forma simplista e, frequentemente, irresponsável. Isso é o que nosso grupo oferece e, por isso, o convidamos, caso você se insira na situação de enlutado por suicídio, a participar de nossos encontros, onde terá a oportunidade de contar a sua história, lembrar do seu ente querido e compartilhar conosco a sua saudade. Esses encontros possibilitam, também, ter acesso a um grande mistério, o de que somos todos unidos por nossos corações e mentes, formando uma família universal única, apesar de nossas limitações, nossos medos e nossos temores. Sigamos em frente, oferecendo acolhimento para essa dor. Muitos passam por situação semelhante, embora particular para cada um, e podem estar a seu lado nesse processo tão desafiador que é o luto. O guru indiano Chandra Mohan Jain nos convida a seguir em frente, e nos deixou uma preciosa lição:
Diz-se que, mesmo antes de um rio cair no oceano ele treme de medo.
Olha para trás, para toda a jornada, os cumes, as montanhas,
o longo caminho sinuoso através das florestas, através dos povoados,
e vê à sua frente um oceano tão vasto que entrar nele nada mais é
do que desaparecer para sempre.
Mas não há outra maneira. O rio não pode voltar. Ninguém pode voltar.
Voltar é impossível na existência. Você pode apenas ir em frente.
O rio precisa se arriscar e entrar no oceano.
E somente quando ele entra no oceano é que o medo desaparece.
Porque, apenas então, o rio saberá que não se trata de desaparecer no oceano.
Mas tornar-se oceano.